Tudo em silêncio. Já faz mais ou menos uma hora que o Richard Widmarch venceu (de novo) os japoneses na sessão coruja. E a hora em que tenho as melhores conversas com você. Não que a gente não fale um com o outro durante o dia, mas, de madrugada, eu me sinto melhor, e, o que é mais importante, estamos aqui só nós dois. Pergunto como é que você vai, acho você mais bonita ainda que na noite passada, dou só uma pista de um presente secreto que vou conseguir pra você e passo tantas vezes os dedos na tua boca que você mal pode falar. Agora você botou os pés no meu colo e eu tô contando uma porção de mentiras, das pequenas, das que não magoam: não bebo mais, sigo a dieta rigorosamente e ando tranqüilo, tranqüilo. Juro. Digo prá você uns pedaços da Canção do Amor Imprevisto, do Mário Quintana: “Eu sou um homem fechado... Mas você apareceu com a boca fresca de madrugada, com teu passo leve, com esses cabelos... E o homem taciturno ficou imóvel, sem compreender nada, numa alegria atônita... A súbita e dolorosa alegria de um espantalho inútil aonde viessem pousar os passarinhos”.
Você acha bacana e eu te dou o livro, com dedicatória e tudo. A dedicatória é assim:
esse livro conversou comigo nas horas mais noturnas da noite, naquelas horas em que não passam mais bondes e em que as estrelas apagam a luz e vão dormir. Isso foi antes de você aparecer. E um livro bonito, gentil e que, de vez em quando, me faz sofrer bastante. Eu gosto tanto desse livro que não quero demonstrar nenhum sinal de sofrimento. E um livro parecido com você.
Você sorri, fala baixinho que nem dá pra escutar e me olha bem nos olhos. Acho que ninguém sabe, mas essa é a tua maneira de agradecer. Acaricio devagar os teus cabelos e digo uma porção de frases, dessas que a gente ouve no cinema e faz coleção, feito titulo de fox-trote: não sei porque estou dizendo tudo isto... Por favor, não ria... Eu podia escrever um livro sobre nós dois... Nunca mais vou ser o mesmo... A mesma velha história...
E invento uns troços malucos; você mudou - igualzinho no blue, você mudou - e, pra esquecer, me alisto na Legião Estrangeira, me engajo na tripulação de um navio baleeiro, vou ser palhaço de circo... Até que um dia, o circo passa pela cidadezinha onde você mora. “O Maior Espetáculo da Terra! Você não pode me reconhecer nesses trajes e, além do mais, você já me esqueceu. Mas - arrá1 - eu não. O Amor dói tanto que o palhaço abandona o tambor colorido e a máquina fotográfica lambe-lambe, daquelas que explodem, e sobe até o lugar dos trapezistas. ~á um salto mortal, em meio aos risos, só pra você. Todo mundo, na saída, tem a mesma opinião: ficou doido!
Você fica triste e eu garanto que é só história. Não vai acontecer. Epa, pra quem é esse papo tranquilizador?
Me abraço contigo e te faço muito carinho, um carinho que vem da infância até hoje, em riso e desespero. Toca um despertador, canta um pardal, passa o padeiro. Faço cara de Richard Widmark suburbano para encarar a manha. Tá chegando a hora. Brinco de assustar meu coração: não falta de jeito nenhum, tá legal?
Você responde lá de mim: só falto se você me esquecer Então, tranqüilizo meu coração: não há perigo. Os elefantes jamais esquecem.
Falta pouco pra clarear. Ur. JekyII ainda está dormindo. Mr Hidde vai abrir outra cerveja e comemorar outra vitória passageira, No meu caso, o monstro e melhor que o médico. Tem levado umas cacetadas, como todo mundo de respeito, mas está vivo. O pessoal que joga pedra não sabe, mas os monstros são muito fiéis.
Nesses últimos instantes da madrugada é que acontecem os milagres. Está nevando em Vila Isabel e dá pra escutar um piano tocando uma valsa de Nazareth. Você me pede, antes de ir embora, pra contar a história dos Três Príncipes com Estrelas de Ouro na Testa. E, como sempre, dorme antes daquela parte do banquete recheado com pérolas. Pela expressão do teu rosto, você está sonhando. E é um belo sonho. Acompanho, cheio de assombro, as transformações do teu rosto. Nessas horas, eu não preciso dormir pra sonhar. Estamos, de repente, num bar, e é muito tarde. As cadeiras já foram viradas sobre quase todas as mesas e as luzes são poucas. O dono do bar é meu chapa e tem a cara daquele italiano da Dama e o Vagabundo. Antes da gente sair, te dou um verso escrito num guardanapo. Hoje, você vai embora de trem. Te levo na estação, ou melhor, na gare (eu sempre quis usar essa palavra!), e você só embarca no último instante, com a máquina começando a andar. O chefe da estação, acostumado a infinitas despedidas, balança a lanterna, apita de novo, faz um comercial de cigarro, e avisa: vai partir! Acendo o cigarro que não satisfaz e fico vendo as luzes diminuindo. Me sinto o próprio Humphrey Bogart. Levanto a garota do sobretudo (tá um frio danado) e vou tomar um conhaque onde nos encontramos pela primeira vez em Viena, em Paris, ou em Vila Isabel, ou nos remos da China e do Japao. Nesse momento, eu sou capaz de tudo. Se eu disser o teu nome de maneira certa, prolongo a madrugada e a esperança.
Mas tem que ser amanhã. Amanheceu. Me sinto velho de novo e quem passa me olha de uma forma entre a descrença e a ironia, como se eu fosse um lampião ridículo que teimasse em permanecer aceso pra implicar com o dia.