achei bem interessante essa lembrança do veríssimo, na coluna de hoje
Bendita bagunça
Além da esperança vencer o medo, a emoção venceu a prudência e a bagunça venceu o protocolo na posse do Lula. Bendita bagunça. Foi inaugurado o que promete ser o mais informal dos governos da República, mas o descaso com o protocolo promete outras coisas além de cenas simpáticas e seguranças aflitos.
O protocolo oficial existe não apenas para garantir a tal “liturgia do cargo” mas para que todos saibam onde ficar e o que fazer e as cerimônias não virem vale-tudo, mas “protocolo” também pode ser sinônimo de convenções arcaicas e costumes inexplicavelmente imexíveis.
A primeira “quebra” do protocolo foi a própria eleição do Lula, uma possibilidade que a nossa etiqueta política não permitia, ou sequer concebia. Assim como não ficava bem alguém como o Lula tomando um vinho caro, não ficava bem alguém como o Lula, que nem doutor é, na Presidência. Antes de vencer o medo, a esperança teve que vencer dezessete preconceitos. Estabelecidos os precedentes, na eleição e na posse, está aberto o caminho para outras quebras de protocolo. Para a bagunça que interessa.
Faz parte do nosso protocolo não escrito que os discursos inaugurais exagerem na retórica das boas intenções. Não canso de contar que uma vez vi o Millôr Fernandes esperar que diminuíssem os aplausos entusiasmados que se seguiram à sua leitura de uma magnífica defesa da democracia e dos direitos humanos para informar que acabara de ler o discurso de posse, na Presidência, do general Médici. Mesmo nos discursos inaugurais em que faltava sinceridade, sobrava estilo e brilho, e não há caso de um que não tenha dito — da forma esperada, protocolar — que combateria a miséria e promoveria a justiça social.
O discurso de Lula bagunçou esta tradição. Disse simplesmente, sem literatura, que não pode haver fome no Brasil. Que não está certo, que não dá, que tem que acabar. A fome é o chão, o básico que nenhuma retórica desconversa e nenhum brilho ofusca. Falar em terminar com a fome assim sem estilo, num discurso inaugural, é pieguice, é ingenuidade, é simplificação grosseira — enfim, não fica bem. Uma das tantas perversões que a elite brasileira institucionalizou para se proteger é esse controle das regras, do que pode e não pode, do que fica ou não fica bem. Se for fiel à sua própria anti-retórica, Lula terá quebrado um dos protocolos mais antigos do Estado brasileiro — o que regulamenta o descumprimento das promessas de campanha, desde que feito com bom gosto.